O jornalista Zé Emílio Rondeau contou em seu blog os bastidores da primeira entrevista que ele teve oportunidade de fazer com Keith Richards. Rondeau escreve sobre música para as maiores publicações especializadas do País e também já produziu clips e discos de várias bandas do rock brasileiro. Fã incondicional dos Stones, o escrevinhador carioca voltou no tempo para nos revelar o que as revistas não publicaram. Abaixo nós transcrevemos o texto de Rondeau, que pode ser lido em sua versão original clicando aqui.
Uma tarde de 1988 com Keith Richards
Por José Emilio Rondeau
“Zé, topa entrevistar Keith Richards?”
A voz de Cecília MacDowell, Gerente de Internacional da gravadora BMG, viajou milhares de quilômetros, de Copacabana, mas chegava clara e impactante no telefone sem fio de meu home office num canyon de Los Angeles.
E o convite era irrecusável.
Já sabia, naquela tarde de agosto de 1988, que Keith havia gravado seu primeiro álbum-solo, dois anos depois do turbulento lançamento de Dirty Work, o que para muitos era talvez o último dos Rolling Stones, um canto do cisne bem mais-ou-menos, feito num clima de imensa animosidade entre Richards e Mick Jagger – que desde 1985 vinha investindo forte numa carreira individual, com discos e turnês por Austrália e Japão.
Mas ainda não tinha ouvido uma nota sequer de Talk Is Cheap, o assunto sobre o qual conversaria com Keith poucos dias depois no Hotel Mondrian, no trecho mais badalado da Sunset Strip, em West Hollywood, do outro lado da rua da casa de shows House of Blues (nenhum dos dois, hotel e casa, existem mais, sinal dos tempos).
A curiosidade era enorme. Os discos solo de Jagger, todos, haviam sido tiros n’água, uma bobagem só (o bom ainda estava por vir), e agora Keith poderia restabelecer a credibilidade dos Stones, bastante abalada naquele final de década, e demonstrar o quanto de si formava os alicerces e o DNA da banda.
Mais: entrevistar um dos Rolling Stones? Cara a cara? Só eu e ele? Durante 40 minutos? É uma chance de ouro, uma na vida.
Já tinha estado com Mick algumas vezes, de 1975 até ali, mas nada que configurasse uma entrevista formal ou organizada para render uma matéria jornalística com algum estofo (lembro de quando ele esteve no Rio de Janeiro, em 1985, filmando o curta – ou média? – Running Out of Luck, com Julien Temple, e protagonizou uma caótica coletiva no Copacabana Palace, cuja parte mais memorável foi a pilha que ele botou num jornalista paulista, garantindo que nunca tinha ouvido falar de The Smiths. O paulista, fanzoco de Morrissey, surtou, irritadíssimo, não se tocando de que estava sendo sacaneado por Mick).
Já havia meio que entrevistado Bill Wyman, durante a passagem dos Stones em Nova York, na turnê de 1981, que eu estava cobrindo, num coquetel organizado para badalar seu single “( Si Si) Je Suis un Rock Star”.
Mas essa seria a primeira entrevista de verdade, e individual, de longa duração, com um artista que ajudou a escrever a cartilha e a história do rock.
Talk is Cheap em primeira mão
Como Talk Is Cheap ainda estava sendo guardado a sete chaves, em vez de receber em casa uma cópia do disco (em vinil, ou em cassete, como ainda era a norma) para me preparar para a entrevista, dias antes do encontro marcado com Keith precisei ir à sede da Virgin Records, em Beverly Hills, para, trancado numa sala, ouvir tudo de cabo a rabo, quantas vezes quisesse, e fazer anotações.
Confirmei todas minhas expectativas positivas sobre o disco e sobre o quinhão que cabia a Richards no legado dos Stones.
E lá fui eu, no dia 31 de agosto, rumo ao Mondrian. Rumo a Keith.
Fui recebido por Jane Rose, empresária de Richards, que me conduziu a uma suíte com vista para as colinas de Hollywood, onde eu deveria esperar enquanto ela ia buscar Keith. Não demorou muito até que batessem na porta. Abri e, detrás de Jane, sorridente, de óculos escuros, mexendo de um lado para o outro, animado e cheio de energia, estava ele.
A primeira impressão foi descrita com detalhes na enorme matéria que escrevi para a revista Bizz. “Em pessoa, Keith parece mais saudável do que aparenta em fotos. O rosto está decorado por várias rugas, mas o corpo está enxuto e os braços exibem biceps musculosos. No lóbulo da orelha esquerda, uma argola trabalhada em prata. Mais acima, na mesma orelha, oculto pelo cabelo, que já está ficando grisalho, outro brinco: uma cobra enrolada em marfim. Vestia uma calça de veludo verde garrafa, combinando com botas de salto baixo e uma camisa de seda salmão, sem manga, que fazia par aos óculos vermelhos, espelhados”.
Nos cumprimentamos, Jane nos deixou e ele se dirigiu ao frigobar, de onde se serviu de Jack Daniel’s, misturado a Ginger Ale e alguns cubos de gelo. Não me ofereceu e fiquei a seco.
O contador de causos
Acendeu o primeiro de uma interminável série de cigarros Marlboro – e abriu o coração e a memória prodigiosa (“com cadência de um contador de ‘causos’”, escrevi) numa entrevista repleta de gargalhadas que extrapolou os limites do disco solo, indo bater em diferentes fases da carreira dos Stones, em meio ambiente, nos atritos com Mick, em drogas, e em sua passagem pelo Brasil, em 1968, de onde levou o violão comprado de um músico de rua em Copacabana, com o qual começou a compor “Honky Tonk Woman”.
Rendeu oito páginas de revista.
Os 40 minutos reservados à entrevista já haviam acabado – e nada de Jane Rose aparecer para terminar a função. Resolvi arriscar: seria possível entrevistar também Steve Jordan, o músico que produziu com Richards Talk is Cheap? “Claro!”, respondeu Keith, levantando-se. “Vamos para meu quarto, de lá a gente chama Steve”.
No quarto – na verdade, uma enorme suíte – , estava Jane, que se surpreendeu com nossa chegada. Keith pegou o telefone, avisou a Steve – que estava alguns andares abaixo – e me indicou onde encontraria o produtor.
Durante a super informativa entrevista com Jordan, soube que naquele mesmo dia, dentro de poucas horas, iriam rodar o videoclipe de “Take It So Hard”, o primeiro single do álbum. Não deu outra: com toda delicadeza (já estava ali há quase duas horas, “alugando” o QG temporário de Richards), perguntei a Jane sobre a possibilidade de acompanhar a filmagem, certo de que ouviria um “não”, seguido de “goodbye”. Jane disse sim. Passou o endereço e combinamos de encontrar lá.
Nos primórdios da TV, os estúdios Ren Mar, na Cahuenga Boulevard, em Hollywood, tinham sido a base da Desilu Productions, de Lucille Ball e Desi Arnaz, e lá foram filmadas séries como “I Love Lucy” e “Guerra, Sombra e Água Fresca”. Quando chego lá, já com a tarde prestes a terminar, um grupo se reúne em torno de uma área relativamente pequena, um set de filmagem simulando um deserto pós-apocalipse onde foram montados bateria, teclados e alguns amplificadores.
O diretor do videoclipe, Larry Williams – conhecido também por trabalhos com Prince, Paul Simon e Iggy Pop – , conduz os últimos retoques antes de iniciar as filmagens quando surgem Keith, Steve, mais o guitarrista Waddy Wachtel, o tecladista Ivan Neville e o baixista Charlie Drayton (que hoje assumiria as baquetas, cedendo a vez a Jordan), plugam o que precisa ser plugado e … começam a tocar!
Show particular de Keith Richards
Ali, a dois metros de mim, com o som das guitarras saindo alto, feroz, cru, dos amplificadores, Keith e sua nova banda, os X-Pensive Winos, tocaram “Take It So Hard” uma vez depois da outra, cada hora enxertando uma quebrada diferente, um riff variado. Quantas vezes, ao todo? Parei de contar na sexta versão, me dei por satisfeito, me despedi de Jane Rose e parti de carro pela noite de Los Angeles, a cabeça e o coração fervendo depois de uma tarde quase inteira com Keith Richards.
Talk Is Cheap serviu de chute no traseiro de Mick Jagger e os Rolling Stones retornaram à ativa triunfalmente em 1989, com Steel Wheels, álbum e turnê.
Musicalmente, ficava claro que os Stones haviam dado muuuuuito duro para chegar àquele resultado final aceitável, mas longe de memorável, excetuadas “Mixed Emotions” e “Slipping Away”. Como bem descreveu Jay Cocks, na revista Time, os Stones soavam ali como “os caras mais velhos da academia querendo fazer boa figura no aparelho de ginástica”. E os créditos mostravam que a experiência solo de Keith espirrou para o primeiro lançamento da banda em três anos: Steve Jordan tem crédito de co-autor de “Almost Hear You Sigh”.
Mas a excursão iniciada em agosto, na Filadélfia (e eu estava lá), redefiniu todos os parâmetros de um show de rock ao ar livre, com um cenário de palco elaboradíssimo (que lembrava uma siderúrgica), bonecos infláveis gigantes, projeções. Com parcerias e promoções com diversos patrocinadores, repetindo com a HBO, com quem já haviam trabalhado em 1981, o contrato para a transmissão ao vivo do último show da excursão, em esquema pay-per-view, que aconteceu em 20 de dezembro, em Atlantic City.
Keith havia ressuscitado sua banda de origem, impulsionando-a adiante, em direção ao futuro, ajudando a mantê-la na ativa até hoje, 30 anos depois, quando ainda é a maior atração no circuito rock.
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