O Luís Fernando encontrou na internet uma crônica publicada por Ezequiel Neves (Zeca Jagger) na Rolling Stone brasileira de 4 de julho de 1972. Estamos reproduzindo o texto, que faz a crítica ao Exile on Main Street, lançado em maio do mesmo ano.

Por Ezequiel Neves
Estou completamente maluco com ‘Exile On Main Street’, o novo LP duplo dos Stones. Já comecei a escrever sobre o disco um montão de vezes, mas ele está na vitrola e acabo sempre levantando daqui pra cair no maior rock. É humanamente impossível ouvir o disco como se ouve outros discos: a gente só consegue fazer isso se estiver com as mãos e pés amarrados. Dessa vez os Stones realmente exageraram. ‘Exile…’ é uma covardia deles com os outros grupos – é um disco bom demais.

O desbunde começa pela capa. Um trabalho gráfico de grande categoria, assinado por John Van Hamersveld, em três cores e fotos ampliadas de um Super-8 filmado por Robert Frank. A parte do layout é intencionalmente demonstrativa e as fotos, em vários tamanhos e cores neutras, ajudam a criar uma atmosfera muito estranha, misturando freaks de toda a espécie com um cartaz de Joan Crawford, um antigo salão de dança com juke-box e ainda os freakíssimos Stones.

A presença de duas fotos do salão de dança é a dica para se mergulhar no som/72 do quinteto – aliás, octeto. Numa época em que a tônica é a nostalgia, em que os grupos mais e mais retrocedem em busca de suas raízes primitivas, a jogada dos Stones é um verdadeiro ovo de Colombo. À sua poderosa formação foram acrescentados um trumpete e/ou trombone (Jim Price), um sax (Bobby Keys) e um piano (Nicky Hopkins). Os dois primeiros estiveram presentes em 4 faixas de ‘Sticky Fingers’ e Hopkins é um velho companheiro dos Stones. Mas funcionando em todas as 18 faixas o ‘octeto’ consegue criar uma zorra nunca vista. O ritmo cuspindo fogo, os metais surgindo como labaredas: uma banda de dança capaz de sacudir um quarteirão – como aquelas de jazz e de swing, de 40 e 30 anos atrás.

Me lembro de Nik Cohn escrevendo sobre um concerto dos Stones em 66, no auge da explosão do rock inglês. Diz ele que era impressionante ver milhares de jovens inteiramente chapados de som, gritando, estrebuchando, se apertando. E diz também que mais terrível ainda era esperar o auditório esvaziar e sentir um estranho odor contaminando toda a atmosfera. É que as garotas, totalmente tomadas pelo ritmo e impossibilitadas de fazer outras coisas senão gritar, acabavam não resistindo. E o que ficava no ar era um triste e azedo cheiro de urina.

Não sei como os Stones ainda conseguem manter essa força – essa fúria em ‘Exile…’. Sem nenhum desgaste e cada vez mais conscientes de sua mira, eles detonam seu som como um gangster de ‘Main Street’ detona seu revólver: para acabar com a raça de quem estiver na frente. Seis faixas de LP tem esse clima perigoso: ‘Rocks Off’, ‘Happy’, ‘All Down the Line’, ‘Tumbling Dice’, ‘Rip This Joint’ (‘Maloque esse baseado’) e ‘Turd On The Run’. As três primeiras são as faixas de abertura dos lados 1,3 e 4, totalmente inacreditáveis em matéria de som e ritmo. A partir dos acordes supermetálicos da guitarra de Richard não há folga para se respirar, pois tudo é um turbilhão de rock massacrante. O som é a maior lenha e a gente compreende o que Jagger quis dizer quando falou que o LP era “mais básico”.

O blues, o folk e o country são também reinvestigados com brilho nunca visto. Os Stones fazem seu ‘back to the roots’ retomando e transformando climas de ‘Out of Our Heads’, ‘December’s Children’ e ‘Aftermath’. Isso acontece em ‘Shake Your Hips’, ‘Cassino Boogie’, ‘Sweet Virginia’ (onde Jagger pela primeira vez toca uma harmônica da gente gritar), ‘Ventilator Blues’, ‘Stop Breaking Down’ (onde Jagger pela primeira vez toca uma guitarra totalmente paranóica), ‘Soul Survivor’ e ‘Just Wanna See His Face’. Esta última é uma canção sobre Jesus feita com a costumeira petulância dos Stones. Seus versos são apenas dois: “Eu não quero falar sobre Jesus/Eu quero ver a cara Dele”.

Nas faixas lentas foi sublinhado o clima pesado de composições como ‘Sway’ e ‘I’ve Got The Blues’, do último LP. Aí também o que conta é a enorme classe dos Stones para lidar com o rhythm and blues negro. Richard e Jagger estão ficando cada vez mais negros, suas composições cada vez mais puras e diretas. Jagger está a própria prima-dona do universo pop, assumindo uma fúria gutural quase suicida – herança maior de Chuck Berry, Robert Johnson e Jimmy Reed. Sua voz sai estilhaçada, triturada, debochada, totalmente pagã e agressiva. ‘Torn and Frayed’, ‘Black Angel’, ‘Shine a Light’ e, principalmente, ‘Loving Cup’ e ‘Let It Loose’ são exemplos maravilhosos do estágio a que chegaram Jagger (este ainda e sempre um cantor ‘extraordinaire’) e Richard como compositores. A competência profissional e artística de ambos espalha também boas vibrações em todos que estão à sua volta.

‘Soul Survivor’, a última faixa de ‘Exile…’, é pontilhada por acordes de ‘Street Fighting Man’. Isso, para quem está por dentro da obra dos Stones, só pode ser um bom sinal. Há nove anos eles vêm mantendo sua invulnerabilidade no dizimado campo de batalha da música pop. Há nove anos são conhecidos e admirados como o melhor grupo de rock do mundo – e a perspectiva é de que manterão esse posto ainda muito tempo. Atualmente sua quarta ‘tournée’ pelos EUA está na metade e as multidões continuam gritando “more!, more!, more!”. Para nós que não podemos vê-los, resta o consolo de ouvir ‘Exile On Main Street’, seu melhor e mais surpreendente LP. Mas cuidado, pois o próprio Jagger é quem dá o toque: a ‘Main Street’ é uma rua perigosa, cheia de prostitutas, gigolôs, assassinos e facas brilhando no escuro.

*** Se você não conhece o Ezequiel Neves, ele é jornalista, crítico musical e um dos maiores fãs e divulgadores dos Rolling Stones no Brasil. Nos anos 1970, passou a assinar artigos com o pseudônimo de Zeca Jagger, justamente por sua paixão pela banda. Ezequiel também foi produtor do Barão Vermelho e de Cazuza.